Existem duas bandas que amo. Várias que gosto, mas duas que
amo: The Beatles e Legião Urbana. Talvez a primeira por ser um ícone de uma
época que eu adoraria ter vivido, e certamente por ser a maior banda de todos
os tempos... Hahaha. Mas a segunda, aaaah a segunda me representa. Representa
meu espírito rebelde, minha insatisfação com o mundo e o quão difícil é esse
mundo pra’quele que é sensível a ele.
E se tem uma música da Legião que não me sai da cabeça
nesses últimos dias é Esperando por mim. É uma faixa do disco A Tempestade,
disco esse que precisei de maturidade pra apreciar devido ao seu peso, sua
profundidade, sua densidade. “Digam o que disserem, o mal do século é a
solidão... cada um de nós imersos em sua própria arrogância e esperando por um
pouco de atenção!”, quer definição melhor pros fenômenos sociais que tomam
conta do mundo?
Essa semana a foto do bebê sírio morto na beira da praia deu
finalmente o destaque merecido às atrocidades que os refugiados têm sido
submetidos. Mas por que só agora? A mim, depois de tudo que li e assisti a esse
respeito, essa comoção soa cada vez mais egoísta, bem como narrou Renato Russo.
A foto daquela criança morta é de tirar o fôlego, é de fazer
com que percamos a fé que nos resta (porque ainda resta um pouquinho) na
humanidade, mas por que a comoção só agora? Por que seria mostrar muita desumanidade
não se compadecer com o bebê, com o pai despedaçado falando que os filhos
escaparam dos seus braços, com uma família destruída. Não sentir dor seria se
mostrar mais apático do que o aceitável.
O que não entendo é a tal da seletividade. Quantos
refugiados já morreram nessa busca insana pela paz? Quantos estão morrendo nas
fronteiras que a eles são fechadas? Quantos morreram antes mesmo de conseguir
escapar da guerra e da miséria que os assolam? Quantas crianças morreram ou
morrerão (conjuguem como quiserem, em qualquer tempo verbal fica macabro) devido a essa postura inóspita das grandes potências mundiais? E quanto tudo isso tem sido
ignorado? MUITO. Sai uma notinha midiática aqui, um Profissão Repórter ali, e é
só. Isso porque não se dá tanta importância, é só mais um evento de 2015, uma
hora se resolve, não sou eu que baterei de frente com a União Europeia... e por
aí vai. Agora, o que pensariam de mim se eu não me comovesse com o quadro
terrível do bebê? Infelizmente, pra mim, é esse pensamento que ficou nas
entrelinhas dos noticiários: o outro é um mero detalhe, tragamos tudo pra
primeira pessoa porque é isso que importa. Não importa o pesar dos refugiados,
mas sim o que EU penso, como EU me posiciono quanto a isso e o que as pessoas pensarão de MIM!
Lá em 1996, há quase 20 anos atrás, Renato Russo já
enxergava na sociedade o “cada um de nós imerso em sua própria arrogância e
esperando por um pouco de atenção”. Vejam isso da seguinte ótica: qual a
diferença entre os refugiados sírios e os haitianos? Nenhuma, certo?! O mesmo
desejo os motiva: a busca de uma vida melhor, um futuro menos difícil, a
esperança de viver com plenitude. No entanto, muitos que se disseram
sensibilizados na última semana são ávidos críticos a disponibilidade do
governo brasileiro em receber haitianos em massa, empregá-los, auxiliá-los num
recomeço, etc. Então me digam: porque não ficar maravilhados com o Brasil nesse
sentido? Ora, se aqui se faz o que todos disseram frente à morte da criança que
esperam que a União Europeia faça, por que não se aprova? É aquela velha
história: a ciclofaixa em Amsterdã é uma primazia, coisa de primeiro mundo, de sociedade
evoluída. Em São Paulo é obra petralha, serve pra atrapalhar o trânsito,
incomodar os motoristas, etc. Fica difícil assim né, pessoal?! Complexo de
vira-lata é complicado.
Vi também essa semana o primeiro ministro da Hungria falar
que não abrirá as portas do país para os refugiados porque, dentre outros motivos, vão macular as
raízes cristãs da Europa. Disse que os refugiados não são "problema dele". Mas alguém pode me explicar que cristianismo doentio
e distorcido é esse? Ou fui eu quem aprendeu errado na catequese? Por que então
em Lucas, 3:10-11 se lê ‘"O que devemos fazer então?", perguntavam as
multidões. João respondia: "Quem tem duas túnicas dê uma a quem não tem
nenhuma; e quem tem comida faça o mesmo"’. Por que o primeiro ministro
húngaro defende o cristianismo e não quer dividir suas túnicas ou sua comida?
Ainda encerrou seu discurso com: “por favor, não venham!”. Claro, educadamente.
As tragédias que subjugam os refugiados estão em uma
crescente desesperadora. Não pontuarei aqui motivos políticos em primeiro lugar
porque não os entendo a fundo, já me é necessário bastante esforço para
acompanhar a política brasileira, quem dirá a mundial. E em segundo lugar
porque, honestamente, pra mim qualquer definição de política que não seja
oriunda da polis que aprendi nas
aulas de filosofia e que trata daquilo que é público, não tem valor. Quer
situação mais pública do que essa? É responsabilidade das grandes potências
abrigar todo esse povo e devolver o que há anos lhe tiram ou pelas próprias
mãos ou subsidiando as mãos de terceiros: recursos, cultura, história,
independência, tranquilidade, visibilidade, VIDA.
Em meio a essa postura desumana de países mundo a fora, além
do Brasil que apesar de todos os outros problemas é sensível às questões que
envolvem refugiados, a Islândia nos brindou com uma corrente de solidariedade.
A escritora Bryndis Bjorgvinsdottir criou um grupo no Facebook com o intuito de
pressionar o governo para que o país recebesse mais refugiados do que se propõe
e o resultado foi, no bom sentido, avassalador: mais de 12 mil islandeses
colocando-se a disposição para abrir as portas das próprias casas em missão
humanitária. Se o governo aprovará? Não se sabe. Mas enquanto muitos europeus
querem manter seu caráter ariano/cristão/discriminatório, a Islândia mostra que
o clichê “somos todos um só” precisa ser dimensionado.
Aguardamos o próximo capítulo e, enquanto isso,
torço pra que mais uma profecia que Renato fez em A Tempestade na música Aloha
não se cumpra. Já pensou que triste seria: “E meus amigos parecem ter medo de
quem fala o que sentiu, de quem pensa diferente. Nos querem todos iguais. Assim
é bem mais fácil nos controlar, e mentir, mentir, mentir. E matar, matar,
matar, o que eu tenho de melhor: minha esperança!”
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