terça-feira, 26 de abril de 2016

Olga e as mulheres Prestes

Há meses não escrevo, e apesar do desejo de escrever não queria falar sobre o impeachment nem tampouco sobre o “bela, recatada e do lar”, afinal, são assuntos com os quais já “gastei meu latim” exaustivamente nos últimos dias, assuntos que pra mim já estão esgotados por um tempo. Não há em mim paciência para a histeria impensada e repetitiva.

Ontem, antes de dormir, comecei a pensar rumo a um resgate: por que tenho tamanha empatia com vítimas das mais diversas ditaduras que o mundo já viu? Por que choro quando assisto a um documentário? Por que, em meio a tantos absurdos vistos e ouvidos no famigerado 17 de abril de 2016, o que mais me deixou em estado de fúria foi o breve – porem sinistro – discurso do deputado Jair Bolsonaro fazendo uma homenagem a um algoz do segundo período de ditadura que o Brasil viveu?

Olga Benário Prestes
Nas aulas de história da escola nunca estudei – salvo uma brevíssima pincelada no final do Ensino Médio – os períodos ditatoriais. Nunca tive a dimensão dos absurdos que acometiam as pessoas. No entanto, quando eu tinha de 11 para 12 anos (se não me falha a memória), encontrei em meio aos livros de minha mãe uma obra chamada Olga, do autor Fernando Morais. Como em casa sempre tivemos o hábito de ler, levei para o meu quarto e deixei separado.

Em um dia muito quente coloquei a rede na varanda e deitei-me pra dar início à leitura enquanto o sono do cochilo da tarde não vinha, e ele não veio. Parei de ler quando, depois de perder totalmente a noção do tempo, vi minha mãe chegando do trabalho. Muitas narrativas a mim eram estranhas: o que era Partido Comunista? Onde ficava União Soviética? O que era direita e esquerda na política? Na noite daquele mesmo dia derrubei todas essas questões em meus pais e eles, pacientemente, foram explicando de modo a não soar como um filme de terror para uma criança o que tudo aquilo significava.

Mas o que prendia minha atenção no livro era, por um lado, a força de uma menina que tinha quase a mesma idade que eu – afinal, quando Olga começou sua militância ainda na Alemanha tinha 15 anos; e por outro lado a crueldade com que uma mulher foi tratada. Olga, ao passar pelas mãos do algoz Filinto Müller e ter sua deportação aprovada pelo governo de Getúlio Vargas, fez uma pesadíssima viagem de navio aos sete meses de gestação direto para Alemanha, onde Hitler delirava pensando em sua cabeça n’uma bandeja. Foi levada à Barnimstrasse, prisão feminina da GESTAPO, e lá deu a luz à filha Anita Leocádia Prestes. Em uma situação de subnutrição e cansaço extremo amamentou Anita durante mais de um ano, pois assim que o período de amamentação se findasse teria que entregar a criança a uma espécie de asilo nazista.

Leocádia Felizardo Prestes
Dona Leocádia e Lygia – mãe e irmã de Luiz Carlos Prestes (companheiro de Olga e pai de Anita) encabeçaram uma campanha humanitária mundial que sensibilizou (leia-se, incomodou) a GESTAPO. A campanha não surtiu efeito nas sentenças do filho e da nora, no entanto a avó conseguiu a guarda da neta deixando os pais mais tranquilos e a criança com uma perspectiva de vida que outrora, mesmo ainda bebê, não tinha. Anita nunca mais viu a mãe que após passar por vários campos de concentração foi executada 23 de abril de 1942 em Bernburg.

A dimensão de muitas facetas dessa história eu fui entender melhor depois de adulta, após ter lido e relido e a cada nova leitura ter ficado mais e mais horrorizada. Bem mais tarde, já durante a faculdade, ouvi alguém falar alguma coisa sobre Anita, que era professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fui procurar a respeito.

Lygia Prestes
Após a morte da avó, Anita foi criada pela tia Lygia Prestes, que apesar de ficar em segundo plano nas narrativas acerca de Olga foi fundamental na militância comunista tendo esse ideal inflamado por influência do irmão. Foi quem mais acompanhou dona Leocádia em suas campanhas na Europa pela libertação de Prestes e dos demais presos políticos no Brasil, além de lutar por um tratamento humanitário a ser destinado a Olga. Após Anita perder a mãe e a avó, e Prestes continuar em uma vida instável devido a militância, Lygia foi personagem principal na criação da sobrinha que escreveu, em 2013, uma homenagem ao centenário de nascimento da tia intitulado Centenário de Nascimento de Lygia Prestes - Uma Comunista Discreta homenageando a vasta trajetória da mesma. 

Anita Leocádia Prestes
Anita ainda adolescente precisou mudar-se para Moscou durante a Guerra Fria devido a perseguição ao pai ressurgir, lá permanecendo até aproximadamente seus 20 anos. Tornou-se membro do Partido Comunista e, vejam, no segundo período ditatorial vivido no Brasil também precisou de exílio. Voltou à Moscou onde fez seu primeiro Doutorado e só pode, efetivamente, firmar residência no Brasil após a lei da Anistia ao fim da década de 70.

Como não admirar essas mulheres? Três gerações (dona Leocádia, Olga/Lygia, Anita) de mulheres guerreiras, fortes, que lidaram com a vida sozinhas, que se sentiram chamadas à militância, que lutaram pela liberdade. Olga, principalmente, deu sua vida por ela.
Descobri que Olga foi quem abriu meus olhos, desenhou minha orientação política e social, instigou meu feminismo. Ela, que morreu 43 anos antes que eu nascesse e tão longe daqui, foi a principal responsável por muitas das convicções que sustento hoje. Por isso quis escrever sobre ela. Por isso, quando o nome de Ustra foi trazido à tona há dias atrás fiquei tão enojada, porque vejo nele as mãos de Filinto Müller, um dos algozes de minha heroína e de tantos outros homens e mulheres que passaram pelos tantos porões da ditadura no Brasil.

Vejo nesses nomes o espelho da impunidade, de almas macabras e sádicas que incutiram a tragédia na vida de tantas pessoas, viúvas, viúvos, órfãos, pais que ficaram sem seus filhos... E mesmo sem se tratar de morte, tantas pessoas que perderam a sanidade, sustentaram (ou sustentam) traumas profundos. Ainda, além dessas, pessoas que esperam até hoje para velar e enterrar seus mortos que nunca foram encontrados.

Graças a Olga tive, muito cedo, noção dos horrores de um regime de repressão. E é por ela e por todos os outros (inclusive por todos nós) que jamais podemos admitir que o totalitarismo ganhe voz e espaço principalmente no local que deveria ser a representação do interesse da população, a casa do povo.


Recomendo, por fim, essa entrevista maravilhosa de Anita Leocádia Prestes muito esclarecedora sobre a vida de militância e familiar dessas pessoas que tem uma importância ímpar para a história!