segunda-feira, 7 de setembro de 2015

As profecias de Renato.

Existem duas bandas que amo. Várias que gosto, mas duas que amo: The Beatles e Legião Urbana. Talvez a primeira por ser um ícone de uma época que eu adoraria ter vivido, e certamente por ser a maior banda de todos os tempos... Hahaha. Mas a segunda, aaaah a segunda me representa. Representa meu espírito rebelde, minha insatisfação com o mundo e o quão difícil é esse mundo pra’quele que é sensível a ele.

E se tem uma música da Legião que não me sai da cabeça nesses últimos dias é Esperando por mim. É uma faixa do disco A Tempestade, disco esse que precisei de maturidade pra apreciar devido ao seu peso, sua profundidade, sua densidade. “Digam o que disserem, o mal do século é a solidão... cada um de nós imersos em sua própria arrogância e esperando por um pouco de atenção!”, quer definição melhor pros fenômenos sociais que tomam conta do mundo?

Essa semana a foto do bebê sírio morto na beira da praia deu finalmente o destaque merecido às atrocidades que os refugiados têm sido submetidos. Mas por que só agora? A mim, depois de tudo que li e assisti a esse respeito, essa comoção soa cada vez mais egoísta, bem como narrou Renato Russo.

A foto daquela criança morta é de tirar o fôlego, é de fazer com que percamos a fé que nos resta (porque ainda resta um pouquinho) na humanidade, mas por que a comoção só agora? Por que seria mostrar muita desumanidade não se compadecer com o bebê, com o pai despedaçado falando que os filhos escaparam dos seus braços, com uma família destruída. Não sentir dor seria se mostrar mais apático do que o aceitável.

O que não entendo é a tal da seletividade. Quantos refugiados já morreram nessa busca insana pela paz? Quantos estão morrendo nas fronteiras que a eles são fechadas? Quantos morreram antes mesmo de conseguir escapar da guerra e da miséria que os assolam? Quantas crianças morreram ou morrerão (conjuguem como quiserem, em qualquer tempo verbal fica macabro) devido a essa postura inóspita das grandes potências mundiais? E quanto tudo isso tem sido ignorado? MUITO. Sai uma notinha midiática aqui, um Profissão Repórter ali, e é só. Isso porque não se dá tanta importância, é só mais um evento de 2015, uma hora se resolve, não sou eu que baterei de frente com a União Europeia... e por aí vai. Agora, o que pensariam de mim se eu não me comovesse com o quadro terrível do bebê? Infelizmente, pra mim, é esse pensamento que ficou nas entrelinhas dos noticiários: o outro é um mero detalhe, tragamos tudo pra primeira pessoa porque é isso que importa. Não importa o pesar dos refugiados, mas sim o que EU penso, como EU me posiciono quanto a isso e o que as pessoas pensarão de MIM!

Lá em 1996, há quase 20 anos atrás, Renato Russo já enxergava na sociedade o “cada um de nós imerso em sua própria arrogância e esperando por um pouco de atenção”. Vejam isso da seguinte ótica: qual a diferença entre os refugiados sírios e os haitianos? Nenhuma, certo?! O mesmo desejo os motiva: a busca de uma vida melhor, um futuro menos difícil, a esperança de viver com plenitude. No entanto, muitos que se disseram sensibilizados na última semana são ávidos críticos a disponibilidade do governo brasileiro em receber haitianos em massa, empregá-los, auxiliá-los num recomeço, etc. Então me digam: porque não ficar maravilhados com o Brasil nesse sentido? Ora, se aqui se faz o que todos disseram frente à morte da criança que esperam que a União Europeia faça, por que não se aprova? É aquela velha história: a ciclofaixa em Amsterdã é uma primazia, coisa de primeiro mundo, de sociedade evoluída. Em São Paulo é obra petralha, serve pra atrapalhar o trânsito, incomodar os motoristas, etc. Fica difícil assim né, pessoal?! Complexo de vira-lata é complicado.

Vi também essa semana o primeiro ministro da Hungria falar que não abrirá as portas do país para os refugiados porque, dentre outros motivos, vão macular as raízes cristãs da Europa. Disse que os refugiados não são "problema dele". Mas alguém pode me explicar que cristianismo doentio e distorcido é esse? Ou fui eu quem aprendeu errado na catequese? Por que então em Lucas, 3:10-11 se lê ‘"O que devemos fazer então?", perguntavam as multidões. João respondia: "Quem tem duas túnicas dê uma a quem não tem nenhuma; e quem tem comida faça o mesmo"’. Por que o primeiro ministro húngaro defende o cristianismo e não quer dividir suas túnicas ou sua comida? Ainda encerrou seu discurso com: “por favor, não venham!”. Claro, educadamente.

As tragédias que subjugam os refugiados estão em uma crescente desesperadora. Não pontuarei aqui motivos políticos em primeiro lugar porque não os entendo a fundo, já me é necessário bastante esforço para acompanhar a política brasileira, quem dirá a mundial. E em segundo lugar porque, honestamente, pra mim qualquer definição de política que não seja oriunda da polis que aprendi nas aulas de filosofia e que trata daquilo que é público, não tem valor. Quer situação mais pública do que essa? É responsabilidade das grandes potências abrigar todo esse povo e devolver o que há anos lhe tiram ou pelas próprias mãos ou subsidiando as mãos de terceiros: recursos, cultura, história, independência, tranquilidade, visibilidade, VIDA.

Em meio a essa postura desumana de países mundo a fora, além do Brasil que apesar de todos os outros problemas é sensível às questões que envolvem refugiados, a Islândia nos brindou com uma corrente de solidariedade. A escritora Bryndis Bjorgvinsdottir criou um grupo no Facebook com o intuito de pressionar o governo para que o país recebesse mais refugiados do que se propõe e o resultado foi, no bom sentido, avassalador: mais de 12 mil islandeses colocando-se a disposição para abrir as portas das próprias casas em missão humanitária. Se o governo aprovará? Não se sabe. Mas enquanto muitos europeus querem manter seu caráter ariano/cristão/discriminatório, a Islândia mostra que o clichê “somos todos um só” precisa ser dimensionado.


Aguardamos o próximo capítulo e, enquanto isso, torço pra que mais uma profecia que Renato fez em A Tempestade na música Aloha não se cumpra. Já pensou que triste seria: “E meus amigos parecem ter medo de quem fala o que sentiu, de quem pensa diferente. Nos querem todos iguais. Assim é bem mais fácil nos controlar, e mentir, mentir, mentir. E matar, matar, matar, o que eu tenho de melhor: minha esperança!”