domingo, 22 de fevereiro de 2015

Sob a sombra da estatueta.

Eu e meu esposo procuramos, todo ano, fazer uma maratona para assistir aos filmes que concorrem ao Oscar. Ele, cinéfilo de carteirinha, e eu, apenas uma admiradora da sétima arte que, por sua influência, acabei me apaixonando pelas telonas. 

*** Cuidado, SPOILERS no texto! ***

Esse ano, dos filmes que assistimos, três me chamaram muita atenção. Filmes contundentes que tratam de questões em parte delicadas, em parte estúpidas, mas com uma linha permeando todas: o poder. Não discorrerei aqui a resenha dos três filmes, pois não foi o que me motivou a escrever, mas sim a minha percepção. Em Sniper Americano vemos a busca pela afirmação de poder dos Estados Unidos. Em Selma - Uma luta pela igualdade, o poder aparece na sobreposição do branco ao negro, sua então superioridade e crueldade. E em O Jogo da Imitação vemos o poder personificado pela prepotência de uma sociedade machista e homofóbica. 

Sniper Americano traz a história do herói nacional Chris Kyle, que ficou eternizado como "A lenda" por ser o atirador mais letal da história americana, tendo atuado por anos no Iraque. O foco da abordagem é o peso psicológico que a guerra tem sobre aqueles que a vivem. A meu ver, fica clara a lavagem cerebral sofrida pela sociedade que internaliza a ~importância~ da guerra e a tem como uma ferramenta para "defender seu povo". Ufanismos bradados desde os primórdios da história norte-americana e, no contexto do filme, reforçados pelo então presidente Bush. A produção é, obviamente, bastante imparcial politicamente falando.

No decorrer do filme, minha empatia só crescia pelo personagem, um homem amável, dedicado, sensível, que sofria com a missão que a ele foi designada mas ao mesmo tempo não conseguia abandoná-la. Sofri com ele. Sofri com sua esposa. Sofri com o desfecho e a maneira estúpida que sua vida é ceifada. Imaginei a dor da família, a revolta, a agonia. 

No entanto, quando cheguei em casa e me coloquei a refletir, cheguei a um questionamento: por que sofri só por ele? Qual a diferença entre ele e todos aqueles que representavam o Iraque? Qual é a diferença entre o que cada um defende? Os dois lados não estão cheios de vítimas que são culturalmente instigadas a derramar sangue pela ideologia que lhes é pregada? Por que fiquei compadecida pelo soldado americano que foi, na verdade, um grande exterminador, e não fiquei compadecida pelo atirador iraquiano que era ex-atleta olímpico e também tinha vida, família, ideais e foi executado por estar do outro lado da guerra? Como somos manipulados, como é fácil perdermos o senso crítico quando o nosso emocional é tocado por algum motivo. Armadilha perigosa, a meu ver. Mesmo assim, bom filme, boa atuação de Bradley Cooper e, acima de tudo, boa reflexão sobre o inferno bélico a qual tantos povos são submetidos. 

Já em O Jogo da Imitação, o desdobramento da história conforme fui assistindo foi completamente surpreendente. Não gosto de ficar lendo sinopses sobre os filmes, prefiro me surpreender, e foi o que aconteceu. Não foi meu filme favorito, na verdade, meu preferido foi A Teoria de Tudo (que nem entrou nesse post), mas me deixou estarrecida. 

O filme conta a história de Alan Turing, interpretado por Benedict Cumberbatch, um gênio matemático que participou de um projeto secreto durante a Segunda Guerra Mundial que visava decodificar mensagens interceptadas do exército alemão. Enquanto sua trajetória como então pioneiro na computação seguia sendo ilustrada, flashes de sua vida cortavam a linearidade do filme trazendo a tona os motivos por Turing ser tão introspectivo. Ele foi apaixonado por Christopher, um menino que estudava em sua escola e que se tornou sua única companhia em meio ao terror do bullying sofrido durante sua vida escolar. Christopher, ainda na adolescência, morreu em decorrência de uma tuberculose, e essa tristeza seguiu com Alan até sua vida adulta. 

Durante os dois anos em que trabalhou junto a uma equipe de mentes brilhantes para o exército inglês, criou uma máquina que conseguiu decodificar as mensagens alemãs e, através de lógica e estatísticas, esse núcleo foi responsável pela vitória de muitas batalhas, inclusive a épica conquista da Normandia. 

Mas nada disso me surpreendeu. O enredo estava interessante, dinâmico, mas nada fora do normal. O que me deixou perplexa talvez pela minha ignorância ao fato é que, na década de 50 - mostrada no filme - o homossexualismo era considerado crime na Inglaterra. Sim, CRIME. Fiquei estarrecida. Turing foi condenado por "vícios impróprios", impedido de trabalhar e submetido a um tratamento a base de hormônios, descrito na fala do personagem como "castração química", como alternativa à prisão. De acordo com o filme, Alan suicidou-se em 1954, o que dadas as circunstâncias não foi nenhuma surpresa. Depois de assistir ao filme fui ler sobre ele e há divergências sobre sua morte, sendo levantada a hipótese de um acidente durante uma experiência. Independente de qual tenha sido a causa - apesar da hipótese do suicídio fazer, pra mim, bem mais sentido - fiquei chocada, revoltada, enojada. 

É claro que qualquer pessoa entende que se hoje a homofobia mata, há décadas atrás o quadro só poderia ser pior, mas condenar (judicialmente) uma pessoa por ser homossexual? Francamente. O governo britânico fez pedidos de desculpas públicos, reconheceu a importância de sua obra, se retratou...mas quantos Alans sofreram? Quantos anônimos foram PRESOS simplesmente por não estarem dentro do padrão então esperado? Quantos foram submetidos a um tratamento monstruoso? Pra mim esse viés que se deu nos últimos instantes do filme foi muito mais importante do que toda a trajetória do projeto bem sucedido que fez - de acordo com a história contada - com que a Alemanha perdesse a guerra. Como somos atrasados. Na década de 50 - e obviamente muito antes dela - atrocidades ocorriam devido a homofobia, e ainda hoje não conseguimos transpor essa barreira grotesca estipulada historicamente e vivida por tantos. Como é importante que obras reconhecidas pela academia - que é também conservadora e preconceituosa - tenham em pauta o retrato de personagens como Alan Turing e tantos outros que foram subjugados por serem apenas fieis a si mesmo. 

E por último, mas nem de longe menos importante, assistimos Selma - Uma luta pela igualdade. Dos três foi o que mais gostei, talvez por ter sempre admirado Martin Luther King mesmo sem ser grande conhecedora de sua biografia. O filme faz um recorte sobre uma atuação específica de Dr. King em Selma, onde lutou pelo direito dos negros votarem (direito esse que já era garantido na constituição mas especificamente no Sul, onde se passa a história, não se fazia valer). Logo no começo do filme Annie Lee, interpretada por Oprah Winfrey, tenta tornar-se apta a votar e tem seu direito negado por um funcionário prepotente que a impede sem exitar. Essa cena é a introdução de tudo que virá a se passar no enredo. 

O que mais me encantou no filme foi que Martin não foi tratado como um mártir, um semi Deus, um homem perfeito, virtuoso, etc. Ele foi tratado como homem. Um grande orador, um homem justo e sensível à situação precária da negritude, ao cerceamento de seus direitos, a coisificação de sua raça. Mas também trata do drama que sua militância impôs à sua família, ao terrorismo que muitas vezes sua esposa foi submetida, a infidelidade, ausência, distanciamento. Mostra sua incrível liderança, mas também seus momentos de dúvida e fraqueza. Além disso, com a sutil aparição de Malcolm X o filme mostra a divisão existente inclusive dentro do movimento negro. 

As marchas acontecidas entre as cidades de Selma e Montgomery são retratadas, e nelas a inacreditável truculência de policiais (representando o interesse do então governador do Alabama, George Wallace), e a persistência do movimento liderado por Doc., como era tratado Martin Luther King. A primeira marcha com civis locais foi monstruosamente atacada pelo corpo policial, que usou gás lacrimogênio e cassetetes para massacrar pessoas desarmadas e pacíficas. Depois disso King convocou a ajuda de todos os que se sensibilizassem com a causa. Sua fala foi transmitida pela televisão e surpreendentemente Selma se encheu com milhares de pessoas dispostas a participar do movimento. A segunda marcha foi muito maior, mas Martin a interrompeu. O filme dá a entender que ele suspeitou de alguma coisa e não quis insistir, não quis mais sangue derramado. No entanto, há outra versão que defende que ele não quis contrariar Frank M. Johnson, um dos poucos juízes simpatizantes à causa, que negou a permissão. Independente do motivo, nada aconteceu. Por fim, na terceira tentativa a marcha - autorizada judicialmente - de fato se realiza, sendo um marco para a garantia pacífica dos direitos civis. Apesar de ter sido pacífica, nem tudo obviamente são flores. Uma das ativistas, Viola Liuzzo, foi assassinada por membros da Ku Klux Klan horas depois do término da marcha. 

Como coadjuvante, o então presidente L. B. Johnson aparece tentando persuadir Martin Luther King a fazer parte de suas ações, ora, sua popularidade e aceitação eram inquestionáveis entre um imenso grupo de cidadãos americanos, mas os objetivos de Doc. não consideravam acordos, nem status, nem poder, nem sucesso...eram voltados ao seu povo, e quando não conseguiu mais resistir Johnson dobrou-se à vontade de tantos que era representada por um homem. Grande Martin. Grande herói. 

Não quis aqui racionalizar a arte, pois aprendi com um querido professor que isso não se faz. O que fiz foi expressar em palavras sentimentos que me foram comuns nos três filmes: tristeza em ver como a vida vale tão pouco diante de alguns. Seja mandando centenas de milhares de homens para matar e morrer, ou submetendo uma pessoa a reprimir seus sentimentos e desejos a ponto de enlouquecê-la, ou ainda culturalmente autorizar brancos a exterminarem negros como se fosse a ordem natural do universo.

Ao mesmo tempo, sinto uma satisfação imensa em assistir a três obras que não maquiam nada disso, mas expõem, despem, escancaram uma realidade que até hoje está presente, hora como lembrança, hora como notícias de tragédias advindas de preconceitos diversos, hora ainda por um sessar fogo que não chega nunca em guerras que envolvem, acima de tudo, intolerância e sede pelo poder. E as vidas se esvaem, escorrem pelas ruas junto com o sangue derramado no passado e no presente. 

Como lindamente narrou Oswaldo Montenegro:
"Que a arte me aponte uma resposta
Mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer..."

E ela floresceu, e floresceu muito, e que muitas mais pessoas sejam reconhecidas pela diferença que fazem no mundo, pela esperança que pregam com sua história, com a coragem de se dedicar aos outros e a verdade de si mesmas que trazem em seu coração.